Tenho o hábito de reler livros e rever filmes dos quais tenha gostado muito. É bom. Você sempre acha algo de novo, e nossas interpretações ao longo dos anos muda substancialmente.
É isto que estou fazendo no momento, relendo pela terceira vez Olhai os Lírios do Campo, de Érico Veríssimo, um de meus favoritos na literatura nacional. As 2 primeiras foram aos 16 e aos 20 e poucos anos. Sempre me espantou a contemporaneidade do texto, mas hoje, às vésperas de nova ebulição política nacional, não resisti e resolvi transcrever aqui, uma pequena (embora grande para um blog) do texto, para que voces me digam se concordam que é uma pena que o texto seja absolutamente atual!
É o diálogo entre um médico (em conflito com suas convicções pessoais) e um paciente eventual.
"-Estou com 60 anos, seu moço, e sempre procurei ser um homem decente. Só de funcionalismo público tenho 35 anos na cacunda, o sr veja bem. Podia ser ao menos chefe de seção.É. Mas não sou. Outros mais jovens passaram por cima de mim e hoje estão ganhando o dobro do que eu ganho. Isso não é nada. Nunca perdi ponto, só falto ao trabalho por doença grave. Nunca aceitei gorjeta, acho que um funcionário tem obrigação de atender a todos com presteza. Que foi que arranjei com isso? Nada.Os espertos subiram e eu fiquei. (...) Converso com os meus amigos sobre as coisas da vida. Eles pensam de um jeito e eu de outro. Eles acham que o munco é dos espertos e dos velhacos. Eu acho que um sujeito precisa antes de tudo ser decente.(...) Um dia destes lendo nos jornais a maluqueira do mundo, notícias de desfalques, roubos, indecências, etc... comecei a perguntar a mim mesmo se no fim das contas o maluco não era eu... Os ladrões andam soltos, sobem na vida. Os caloteiros sem vergonha levam vida de lorde, tem crédito em toda a parte. É...Eu estou louco. Louco varrido, seu moço.(...) Pensei então num plano que estou executando (...) vou me meter num hospício. Pode ser que na casa dos malucos um dia eu chegue a ser autoridade, encontre algúem que me ouça, me atenda, concorde comigo. (...)
O médico disse:
- Seu Trajano, me chamaram para atender o senhor. Mas não posso.
- E porque? (...)
- Porque eu também estou louco.
(...) "
Gente, o livro foi escrito em 1938!
O que é que a gente faz hein?
É Perene, que pena!
Adoreiiiii!!!!!!!!!!! Beijos
ResponderExcluirMaravilhoso. Tristemente maravilhoso. Seria motivo para acreditar que só há razão para pessimismo? Ou talvez, por estarmos lendo exato agora, seria ao contrário motivo para o mais preciso otimismo?
ResponderExcluirMinha Linda … e nada mudou. Ou será que nosso povo é possuidor desta natureza maldita mesmo? Com já foi dito é tristemente real. Bjos
ResponderExcluirVou arriscar a fazer uma provocação.
ResponderExcluirTalvez o médico do relato não tenha parado para pensar que a questão é de valores. A observar pelo seu relato, ele foi fiel aos seus princípios, e que estes princípios estão ligados a uma crença na integridade e no uso do seu talento, suas habilidades, na garantia do bem estar do outro. Nesse sentido ele, do alto dos seus 60 anos, é um vencedor.
Ele não deve se medir com régua alheia. Se ele se pauta por um código de conduta que é francamente contrário à ordem dessa hierarquia de valores das relações do mundo, não pode esperar ganhar recompensa deste. Já dizia o filósofo Sartre, que a grande batalha do homem não é vencer o mundo, mas a si mesmo. Nesse sentido, ele é um venceu as dificuldades. Atravessou o deserto por 40 dias, foi tentado, e venceu as tentações.
Quantas vezes não deve ter se insinuado na sua frente a chance de uma propina, de um favorecimento ilícito, para que ele chegasse a um posto maior na hierarquia, e ele não aceitou. Aqui, cito outro filósofo, Spinoza, quando diz que "o prêmio da virtude é a própria virtude". Se os jovens se vendem tão jovens, é porque só o são na idade, mas na cabeça, já estão todos vendidos a esse modo de existir que não prioriza o ser humano.
Mudar o mundo pode começar num simples gesto, como se sentir recompensando apenas em fazer o bem.
Abraços!